P.O.V – Hellena
A noite se erguia como um manto escuro sobre meus olhos. Sem estrelas, sem lua, sem nada. Só, como eu.
Tirei os olhos do negrume noturno, e voltei a encarar a chama tremulante da vela. Os papeis a minha frente estavam manchados de tinta, e minhas roupas de sangue.
Um homem estava deitado entre meus lençóis, de olhos fechados em um sono sereno, sereno demais para quem fora usado como alimento. Mas ele já devia estar acostumado. Quem vivia nesse lugar, convivia com a eminência de morte o tempo todo.
Mas devo admitir a coragem dele de se deitar com uma súcubo jovem como eu, apenas três anos de existência.
Fui ate a cama e sentei em sua beirada, encarando o rosto moreno, ele estava totalmente imóvel, acho que tirei um pouco de energia a mais. Não havia me satisfeito, a fome ainda borbulhava em meu estomago. A fome de vida.
Às vezes eu me questionava se valia a pena à imortalidade, em troca de nunca poder ter quem ama ao seu lado – a menos que queira dividir-lo com suas irmãs. – e com essa fome terrível, sem falar a sede.
-É parte de quem somos Hellena, sem a energia, nos definhamos. – recordava uma das milhares de aulas que Kahlan havia me dado, tentando passar a sabedoria súcubo para mim.
O humano começou a se mexer na cama. Que bom, ele pelo menos estava vivo. Seus cabelos caiam molhados de suor por seu rosto.
-Só restam nos três Hellena, e em breve nos duas. Não podemos nos dar o luxo de deixar as súcubo. O espírito precisa existir, e nos somos ele.
Inferno!
Já não bastava eu estar presa a elas por meio dessa maldição, agora eu tinha que estar presa por meio desse elemento? Por que logo eu? O que eu tenho de especial? Nada! Eu sempre fui um fracasso em tudo que eu fiz, e agora acontece isso.
Minha vida deu uma cambalhota, deixa de ser vida e vira existência. Minha depressão vira dom, e eu viro princesa, tudo em questão de segundos.
O humano acordou, entreabrindo os olhos e sorrindo.
-Minha dama...
-Pode ir. – murmurei fechando meu robe de renda negra.
-Parece ainda estar com fome. – ele se levantou e andou ate mim.
-Não estou, agora vá. – ordenei.
Como um bom e inteligente serviçal, ele deu meia-volta, se vestiu e saiu pela porta, no instante em que minha mãe entrava. Vestia-se com a elegância de uma rainha.
Ela seguiu o jovem com os olhos, e sorriu, ele retribuiu.
-Como foi à refeição? – voltou seus olhos castanhos para mim, um sorriso traçando sua face.
-O que deseja? – tirei um vestido do armário e joguei minhas roupas sujas no chão. Coloquei-o pela cabeça, e a seda contra a minha pele me lembrava de um toque que eu não sentia há muito tempo.
-Kahlan me disse que você anda chateada com algo. – ela se sentou em uma cadeira e mexeu em algumas folhas em cima da minha mesa.
-Não... Eu só... Porque eu tenho que ir ao trono e não ela? É impossível para mim ser rainha sem saber nada. – disse tudo em um suspiro, eu tinha o costume de dizer tudo que eu pensava ultimamente. Choraminguei sentando na cama.
-Quando sua avó me criou e disse que eu governaria as súcubo, também fiquei assustada, mas aprendi a governar. E agora é sua vez. – falou em seu típico tom maternal.
-Mas Kahlan é muito mais propicia para governar, ela esta há séculos do seu lado, sabe tudo que precisa. – torci minhas mãos.
-Hellena, Kahlan não nasceu do ventre da grande mãe, ela nasceu de uma súcubo da água. Ninguém sabe se os filhos que ela tiver serão do espírito, é muito vago.
-Mas como é possível? Eu sei que uma súcubo da terra pode nascer de uma do fogo, mas porque o espírito só nasceu de ventre espírito?
-O espírito é um elemento muito difícil de lidar, ele é muito seletivo, e acredita que se escolhe alguém, os genes dele se passaram para os filhos dessa súcubo.
-E como Kahlan nasceu do espírito?
-A mãe de Kahlan nasceu com um problema muito raro, ela nasceu infértil. Então eu concedi a ela permissão de ir ate a floresta dos espíritos, e lá, eles deram a ela uma filha. – Desdêmona segurou minhas mãos. – Ninguém sabe se os filhos que ela tiver serão do espírito.
-Então eu sou a única que poderá dar seguimento a linhagem?
-E tem que ser com um íncubo da realeza.
Suspirei, todos sabiam disso. As únicas que não tinham escolha sobre o parceiro eram as damas do espírito. Minha mãe quebrou essa regra, e deu a luz a uma menina filha de um vampiro, e assim, Katherine nasceu sendo do ar.
Fitei o chão.
-Sabe que precisa ficar com seu povo. – ela murmurou.
-Sim... Eu sei. – suspirei.
-Agora eu tenho de ir. – ela se levantou segurando a saia do vestido, mas no ultimo minuto se voltou para mim. – Isaiah está te esperando nos estábulos, vá dar uma volta, precisa de ar, e de tempo.
Isaiah era a minha... Babá. Um íncubo que serviu minha mãe durante muito tempo, e que agora servia a mim. Ele cuidava de mim e ficava com vista grossa vinte horas por dia, tirando quando eu me alimentava.
Troquei meu vestido novamente, colocando um negro e de tecidos opacos, me vestindo como uma viúva em pleno luto. Fui ate o espelho encarando meu reflexo, olhando para aquela linda mulher que eu era agora.
-Tudo bem princesa? – Isaiah estava parado em uma pose que me lembrava vagamente alguém.
-Não devia entrar em meu quarto sem bater. – disse séria e ajeitando um babado do meu vestido. Resmunguei alisando a saia pragueada.
-Algum problema com a roupa?
-Não me acostumei ainda com o estilo vitoriano gótica. Esse espartilho me mata. – ofeguei. Ajeitei meu chapéu casquete, pequeno e cheio de enfeites, as penas negras me irritavam um pouco.
Puxei o véu negro de perolas para frente do meu rosto.
-Vamos? Se nos apresarmos chegamos em Atalussa pela manha.
-O que vê naquela cidade? Nem mesmo é uma das nossas protegidas.
-Ela me lembra Verona. – disse evasiva saindo do quarto.
Ele me seguiu pelos corredores infinitos. Eu levara dias para entender o esquema das passagens e caminhos, apesar de não ser muito difícil reconhecer caminhos que eu mesma planejava.
Haviam me trazido para o mundo oculto há três anos, breve quatro. E me levaram para um castelo, chamavam-no de Armageddon – não sei se tinha haver com a batalha final entre o céu e a terra, mas... Wherever.
Agora eu vivia aqui, planejando caminhos, vigiando as minhas costas, e vivendo de treinamento, vivendo da vida dos outros. Às vezes eu dava umas escapadas, e andava a cavalo, ia de cidade em cidade.
Todo o mundo dos humanos se refletia nesse mundo, e se houvesse uma Verona aqui, era essa cidade que eu sempre ia quando podia, aonde eu ia para pensar.
Fomos para os estábulos e pegamos nossos cavalos, partimos quando os primeiros raios começaram a nascer no céu.
Minha grande égua negra galopava em alta velocidade, dando tudo de si, como sempre fazia. Ela deixava um grande rastro de patadas negras para trás, levantando poeira.
Isaiah estava atrás de mim, emitindo sons para estimular seu cavalo a ir mais rápido, ele não estava acostumado a ser montado por outras criaturas que não súcubo.
Cheguei ao alto de uma colina, apeei o cavalo elegantemente, e ali fiquei admirando a cidade humana. Ela estava longe dos limites de proteção súcubo, então viviam todos com medo de algo atacar-lhes a qualquer momento.
Ela devia estar a duas horas de distancia do castelo.
Desci da eqüina e sentei na grama, meu vestido formando um balão a minha volta.
-Algum problema? – ele me alcançou e parou o cavalo.
-Não. Apenas admirando a paisagem. – murmurei me inclinando para a visão da Verona medieval.
-Quer descer ate a cidade?
-Não. Quero apenas olhar-la. Apenas olhar.
Ele suspirou e sentou ao meu lado. Ficamos em silencio, vendo o sol crescer no céu, vendo as pessoas começarem a acordar e assarem seus pães.
-Não sei se quero tudo isso Isaiah... Eu sou a única que pode dar continuação a linhagem do espírito, mas para isso eu tenho que me relacionar com meu meio-irmão, o íncubo da realeza íncubo.
-Tem que terminar seu treinamento para saber o que quer. – suas luvas de couro rangeram desconfortavelmente, quando se tratava desse assunto, ele não era o melhor a ser consultado.
Para um incubo como ele, ser uma criatura com poder infinitamente grande, era a melhor escolha de vida para qualquer um, mas não para mim, uma súcubo tão jovem e ainda tão humana.
-Ninguém me entende...
-Tentar explicar amor para uma súcubo, é como explicar física quântica para uma criança, ou explicar para um humano nosso instinto de matar. – fitou o horizonte.
Fechei os olhos sentindo o vento no rosto.
O sangue imortal ainda corria novo por minhas veias, e dele grandes mudanças vinham. Agora eu sentia tudo dez vezes mais intensamente, e ate uma simples brisa me concedia um prazer confortável.
-Porque sentimos vontade de matar? – perguntei baixinho.
-É o instinto de sobrevivência. Assim como os animais tem vontade de matar para sobreviver e se alimentar, nos também. As súcubo são o desejo mais puro e bruto, o desejo único.
-O que isso quer dizer?
-O prazer de vocês é puro, sem culpa, apenas a alimentação, o prazer de estar realizando aquele ato. Apenas a sobrevivência. – dobrou uma perna e deixou outra esticada.
-Como sabe tanto sobre as súcubo?
-Fui criado entre vocês. Por isso sua mãe me mandou para cuidar de você, alem de te ensinar. – deu de ombros. Seu rosto refletia uma mascara pensativa.
-Como anjas podem sentir tanta luxuria?
-Você podem até ter a alma de anja, mas a índole de vocês foi convertida por Lilith. Ela tirou a maldição de vocês e fez outra, a maldição da eterna fome, a sede, a tentação, o desejo eterno. Vocês são imortais superiores presas em corpos inferiores.
-Sim, isso eu sei, por isso usamos esse colar... – revirei os olhos.
-As Wisps são os seres mais delicados feitos pelo Criador, são as almas que não encontraram o paraíso, as almas ancestrais. – imaginar que diabo e deus existem me deixava perturbada.
Eu não era ateia, mas não me considerava uma católica praticante, eu nem mesmo sabia se acreditava em Deus. Mas agora... Agora tudo tinha mudado, de novo.
-Todos nos tratam como criaturas más... A primeira coisa que ouvi sobre as súcubo era que eram loucas sedentas por poder e sexo. – passei minha mão por meus cabelos abaixo do chapéu.
-A uma linha muito tênue entre o bem e o mal Hellena, ninguém é inteiramente mal, ou inteiramente bom, nem os anjos ou demônios são assim. Nos, “criaturas das sombras” – criou aspas com os dedos. – Somos o meio entre isso tudo.
Minhas conversas com Isaiah eram sempre assim, falávamos de uma coisa, e no minuto seguinte eu dizia outra sem nada a ver.
-Odeio meu dom Isaiah, ele só me fere.
-O seu dom é o mais perfeito que existe Hellena. Ele é todos os elementos em um só, e muito mais. É o dom da vida. Você Hellena, você é o exato meio entre o bem e o mal. A súcubo que ama, que mata, que salva.
-Mas para dar a vida, eu preciso tirar um pouco da minha.
-Tudo tem um jeito princesa, sua mãe e Kahlan convivem com isso, você também achara um modo de coexistir com essa dor. – seus olhos estavam cheios de zelo e carinho. – Você é uma das únicas restantes da sua linhagem.
Refleti um pouco em silencio. Apesar de três anos parecem muito para humanos, para nos era como uma tarde, eu ainda não sabia grande parte dos mistérios do mundo oculto.
-Isaiah, como minha mãe tem cicatrizes? Certa vez ela me mostrou, mas as que eu tinha na vida humana sumiram, e as recentes, mas mesmo assim de muito tempo. – acrescentei quando ele me olhou preocupado. – Somem na hora.
Ele pareceu relutar e desviou o olhar.
-Eu não sei Hellena.
-É claro que sabe. Você não é o consorte dela? – ergui uma sobrancelha.
-Não! – negou rápido.
-Mas vocês têm uma ligação muito forte.
Ficou em silencio, olhando os pássaros cortando o azul de nosso teto celestial.
-Teve uma vez que eu fui ate uma medica paranormal que servia aos Volturi. Ela teve de esquentar uma agulha ate ferver para conseguir penetrar na pele do vampiro, é isso que ela faz?
-Para que quer saber? – perguntou ríspido.
-Só curiosidade. – falei assustada.
-Me desculpe. – ele disse duramente.
Ficamos em silencio, um silencio perigoso e cheio de remorso. O assunto ‘minha mãe’ devia irritar ele. Com minha visão periférica eu podia ver os humanos andando de um lado para o outro.
-Porque protegemos algumas cidades, e outras não?
-A organização imortal é bem extensa. Os vampiros não podem caçar em nossas cidades, então ele dizem que precisam de cidades livres para caçar. Algumas se salvam, mas outras... – deixou a frase morrer.
-Então, porque os humanos que vivem em cidades desprotegidas não se mudam para lugares com proteção?
-Quem vai entender os humanos? – ele riu com humor. – Não sei de tudo Hellena. – olhou o relógio de pulso. Ok. Vivíamos na época medieval, mas a tecnologia estava em todo canto, outra coisa muito estranha. – Já esta na hora de voltar.
Montou o cavalo e estendeu uma mão para mim. Pisquei meus olhos em direção a cidade, tão bela, jovem e velha ao mesmo tempo. Levantei-me sem tocar-lhe a mão, a irritação e a fome borbulhando em mim.
Montei minha égua e sai em rápido galope, o mais para longe que eu podia das lembranças que aquela cidade me causava. O mais para longe do proibido, do proibido tão desejado.
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